* Adriana Potexki
Quando acompanhamos pelas mídias as grandes tragédias e catástrofes, nos sentimos compadecidos por vários dias, até semanas. Depois de um tempo não lembramos mais e continuamos nossas vidas. No entanto, para quem viveu a tragédia o pesadelo não acabou. Muitos perderam tudo, inclusive a quem mais amavam, e a dor da saudade pode ser ainda mais torturante que o momento da catástrofe. Muitos se sentem abandonados por Deus.
Os prejuízos econômicos, perdas de vidas, de meios de subsistências, as lesões corporais, são os danos visíveis, porém o efeito mais difícil de mensurar são os impactos psicológicos, as feridas da mente.
Buscando aliviar a dor, muitas pessoas optam pelo uso de substâncias químicas, como álcool e drogas. Outras se tornam apáticas a tudo, como uma forma de defesa, evitando sentir a dor e, em alguns casos, chegam a se tornarem agressivas. O extremo é o desejo de tirar a própria vida. As taxas de suicídio são um exemplo disso, elas duplicaram após o furacão Katrina em 2005, nos EUA.
No Brasil os dados não são diferentes. Em Mariana, 16,4% das vítimas do rompimento da barragem de Fundão (2015) apresentavam comportamento suicida em 2017. Das 271 vítimas entrevistadas, 28,9% sofriam de depressão, segundo o projeto “Pesquisa sobre a Saúde Mental das Famílias Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (Prismma)”, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Trauma”, em grego, quer dizer ferida. Da mesma forma que a medicina cuidará dos ferimentos do corpo e estes cicatrizarão, também o cérebro precisará curar as feridas deixadas na mente. Descobertas a respeito do cérebro mostram que a mente tem um sistema de processamento para cicatrizar as feridas e dar sentido a elas.
O tratamento com a técnica EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing), criada por Francine Shapiro e reconhecida oficialmente pela Associação Americana de Psicologia, pela Sociedade Internacional para Estudos sobre o Estresse Traumático e pela Organização Mundial da Saúde, consiste em estimular as áreas bloqueadas do cérebro com estímulos bilaterais táteis, visuais e auditivos, provocando a “cicatrização” das “feridas” emocionais.
Um grande trauma é capaz de bloquear no cérebro as lembranças positivas e surgem pensamentos negativos a respeito de si mesmo, como: “sou culpado”, “deveria ter salvado minha família”, “sou merecedor de castigo”.
Em Petrópolis, Brumadinho e com familiares da Boate Kiss, psicólogos do EMDR se doaram para aliviar o sofrimento das pessoas afetadas por essas tragédias, aplicando gratuitamente a técnica.
Em meu livro “Vencendo os traumas que nos prendem”, lançado este ano pela Canção Nova, me reporto a uma das dores mais comuns nos casos de catástrofes: o sentimento de abandono de Deus. Essa é uma das dores mais profundas, porém, sim, é possível curá-la, quando a ferida for tratada.
Algumas pessoas muito religiosas quando passam por traumas agudos dizem não conseguirem nem rezar e isso é extremamente compreensível, pois o cérebro está adoecido. A pessoa precisa, primeiramente, ser ajudada, para voltar a exercer suas manifestações de fé. Tive um paciente que depois de ter curado sua ferida no cérebro disse: “Deus não me abandonou, ele chorou comigo”.
Na tragédia em Petrópolis no Rio de Janeiro em 2011, após as enchentes e deslizamentos de terra, uma sobrevivente relata que não conseguia “tirar da cabeça” o cheiro da lama e o barulho do vento. Após o reprocessamento com o uso da técnica, ao ser exposta ao som da chuva, ela lembrou de quando era criança e tomava banho de chuva sorrindo. Lembrou-se também do cheirinho de terra molhada, da sensação gostosa do vento entrando pela janela. A dor deixa de existir e os sintomas se transformam, dão lugar ao belo novamente, a vida. Parece algo impossível, mas o cérebro tem esse lindo potencial de cura.
Esse ano, estive nos Estados Unidos palestrando e conheci o Memorial & Museu Nacional do “11 de Setembro” e fiquei impactada. Todas as construções ilustram a força que o ser humano tem para se reerguer. No local onde ficavam as torres, há um paredão de água que se esvai num profundo e gigantesco buraco. Só se ouve o barulho da água e um silêncio entre os turistas. É inevitável que se pense no sentido da vida e no valor de cada vida perdida nomeada no mármore que circunda a obra. Lembrei-me que nas semanas subsequentes da queda das torres, falei com pessoas que estavam em Nova York. Todos mencionaram a humanidade, a unidade, a fraternidade gerada entre as pessoas. É disso que estou falando para quem está lendo esse artigo e pensa que tudo acabou. Isso não é verdade, há algo a mais, maior, que vai além.
Curar um trauma não é apagar da memória o fato traumático, porque se fizermos isso vamos também descartar coisas úteis, jogar fora aprendizados e, principalmente, deixar de ver o sobrenatural, que nos faz continuar vivos.
* Adriana Potexki é psicóloga, certificada pelo EMDR Institute; autora dos livros “Cura dos sentimentos – em mim e no mundo”, “A cura dos Sentimentos nos Pequeninos – Papai e Mamãe brigaram” e “Vencendo Os Traumas que nos Prendem”; colunista do canal Formação Canção Nova e membra do Movimento dos Focolares.
Crédito: Alice Venturi e Helen Mariana Souza/Janela do Tempo.